O Presente.
Vésperas
de Ano Novo, mais um plantão já que fiquei pela cidade. Esse estava calmo.
Atendo um paciente, meia idade, com algumas coisas da vida em comum. Vem ao
pronto socorro com diagnóstico já feito, na esperança de evitar que sua dor nas
costas piore como em vezes anteriores. Não era só mais um paciente com dor nas
costas que veio querendo um milagre para ela. Veio já ciente de sua condição, e
fiquei feliz em ouvir que ele já tomava em sua vida diária as medidas
necessárias para evitar que a dor surgisse. Músico, passa muitas horas na mesma
posição, e ele mesmo já havia adaptado seu modo de tocar e segurar o
instrumento , e notou que houve importante melhora na dor, e diminuição no
número de episódios da tal lombalgia. Fez seu desabafo sobre o medo de travar
como das outras vezes, explicando o porquê de ter ido ao pronto socorro.
Conversei com ele, e fiz uma medicação, dei algumas orientações, e disse que o
veria novamente após a medicação realizada para deixar alguma coisa para casa
caso precisasse, e dar algumas outras explicações para melhorar sua dor.
No
mesmo dia atendi uma senhora, seus oitenta e poucos anos, bem forte pelo jeito
de andar, apesar da idade e queixa. Tinha também uma dor crônica no quadril
direito. Nem bem entrou no consultório, já colocou para fora sua queixa local,
e sua indignação pela falta de diagnóstico preciso mesmo após passar por vários
médicos. E veio na sequência outros motivos pelo qual estava nervosa e triste,
problemas pessoais, o choro e os pedidos de desculpas pelo choro. Eu falei que
podia chorar. Então ela começou , bem segura de si a falar que eu tinha que
resolver o problema dela, que ela não aguentava mais, despejou seus exames em
cima da mesa do consultório, de meses atrás e um recente, e que já tinha feito
de tudo e nada melhorava sua dor. Que após a morte de um parente, a dor voltou
e não passou mais. Respirei fundo e pedi a Deus e meus Anjos da Guarda que me
ajudassem a conduzir da melhor forma aquele caso, e que me protegessem diante
de tamanha insatisfação, que eu conseguisse fazer algo. Pedi então para a
paciente para examiná-la, ela dizia bem segura que nada doía, só quando andava,
uma dor na lateral do quadril direito que descia para a coxa. Repetia que não
tinha nenhuma limitação de movimentos. Pensei, hora, porque está tão nervosa
então, já sei.... A dor.... E eu teria que resolver isso. Foi então que ela me perguntou
se ela ia morrer daquilo. Médicos são seres humanos, e comecei a ficar com a
paciência no limite. Eu disse que geralmente dor nos membros não mata as
pessoas. Então ela reclamou dos atendimentos anteriores, que falaram que era o
fêmur e que ela foi lá para saber se era mesmo. Em alto e bom som me disse “
quero garantia de que é ou não meu fêmur”. Nesse momento me irritei, por mais
que lembrasse dos ensinamentos de Dalai Lama, como ser humano, que também sente
e tem lá suas dores, explodi educadamente um : “Garantia só tenho uma, que eu
vou morrer... Todos nós vamos morrer um dia... “, a senhora se assustou, e eu
também. Fiquei chocada com a “Garantia de que eu vou morrer...”, refleti em
segundos afinal gosto de viver “perigosamente” escalando e mergulhando por aí. Risco
que se corre ao viver intensamente. Enfim, já tinha falado, e serviu pelo menos
para a senhora modificar seu jeito de falar comigo. Recuperada da explosão de
sentimentos , não sou Deus, não tenho como garantir nada, fui ver os exames da
paciente e identifiquei uma alteração
que poderia estar causando sua dor, e colegas não haviam identificado.
Tentei explicar, e novamente ela queria garantias de que o problema não era no
fêmur. Pacientemente expliquei que o que aparecia de seu fêmur nos exames não
tinha nada, ao meu ver, que fosse grave, que eram apenas alterações pertinentes
a sua idade. Ela mais algumas vezes, agora se desculpando pela insistência,
perguntou de novo se não tinha nada no fêmur, expliquei que o que eu tinha observado
era fora, no meio da musculatura e poderia causar a dor, que tentaria tratar
com fisioterapia e medicação e achava bom ela consultar um colega especialista
para acompanhar seu caso , caso não melhorasse tentar alguma outra medida. A
senhora no final , perguntando mais algumas coisas se não tinha nada no fêmur,
foi embora e me abraçou, dando um beijo no rosto e que se a dor melhorasse,
voltaria para agradecer de joelhos. Eu disse, pensando em alguns amigos e familiares
que tem muita saúde, mas às vezes procuram “doenças” neles mesmos e nos outros,
“Senhora, não precisa vir agradecer de joelhos, ficarei muito feliz se a
senhora pensar que tem saúde e força para aproveitar a vida, esforce-se para
pensar em coisas boas, a senhora é muito forte! Pense na saúde que tem. “. Ela
foi embora com minhas receitas e feliz.
Voltou
o músico da medicação, bem melhor, e começou a falar sobre a vida. Como o
plantão estava calmo, eu aproveitei e ouvi suas histórias e me identifiquei com
algumas delas. Ele falou sobre depressão, e conversamos sobre como só quem tem
algo parecido sabe que não é frescura ou moleza, como é química a coisa, e como
quem tem, melhora quando a parte química é equilibrada usando recursos
adequados e fazendo um bom acompanhamento com uma boa equipe médica. Contou
como quando se é pai, tudo o que se faz é pensando primeiro nos filhos, e fez
um desabafo sobre como a classe de artistas é pouco valorizada no Brasil. Eu
compreendia bem o que ele falava, disse que toco piano desde nova. E refletindo
enquanto ele falava, fui lembrando dos quantos amigos que tenho, das minhas
andanças e aulas pelas escolas de música, teatro e dança que passam aperto
exatamente como ele falava. Da instabilidade e o quão tensos ficam devido a
essa instabilidade. Falou sobre um episódio com sua filha, alguma intercorrência médica quando pequena,
momentos de tensão junto a sua esposa, falou sobre acreditar em algo maior que
o que vemos com esses olhos humanos e contei para ele sobre uma experiência
minha, passada dias antes. Mais precisamente na manhã do meu aniversário, dia
15 de novembro, num voo Natal – Recife – São Paulo, após dias de mergulhos
maravilhosos com meus amigos do mundo subaquático. Eis aqui “O Presente”,
título desse texto, que há dias penso em como registrar. Com essa reflexão
entre fim de ano, trabalho, dores de pacientes, alegrias de amigos, arte, vida,
registro meu “O Presente”:
“Estávamos
todos em nossas poltronas, no fundo do avião. Um voo da Azul, que começou às 6
horas e pouco da manhã em Natal, escala em Recife, para retornar a São Paulo
depois de uns ótimos dias de sol, mergulhos e praia com antigos e novos amigos,
para dar continuidade às comemorações do meu aniversário. Era 15 de novembro de
2016. Todos conversando, eu após uma divertida “confusão” de troca de lugares, sentada ao lado da minha dupla,
observando o plano de voo na tela a minha frente, gosto muito de acompanhar no
mapa, por onde estamos passando. Pensando “já em Minas com Rio de Janeiro, logo
chegaremos! “. Ainda ia almoçar com a família naquele dia, mais comemoração.
Foi então que uma das comissárias faz um pedido.... Que se algum médico
estivesse à bordo, por favor se apresentasse com sua identificação para um
atendimento médico, que se voluntariasse... Viajo muito, e tinha muito medo de
um dia ser chamada num voo. Várias vezes falei sobre isso com amigos, sobre o
que fazer se estamos diante de uma pessoa passando mal em algum lugar que não
seja nosso ambitente de trabalho, onde temos os recursos necessários para
atender e “salvar” vidas. Muito medo eu tinha de num voo chamarem para ver
alguém, e esse alguém fosse um adulto infartando. O que poderia ser mais
assustador para mim que um adulto infartando? Discuto muito esse tema pois, com
a evolução da medicina, as diferentes especialidades, acabamos perdendo a mão
para certos tipos de atendimentos. Eu , traumatologista, mais lido hoje em dia
com fraturas, atendimento ortopédico de urgência. Há muito que não participo de
uma reanimação. Claro que estudei, estudamos, todos nós médicos em suas
diferentes especialidades, mas como outras atividades, se não praticarmos
perdemos a eficiência para fazer algumas coisas. Sorte a minha, sempre gostei
de urgências e emergências. Eram os estágios e matérias que eu mais gostava na
vida acadêmica. Pronto Socorro, de tudo! Cirurgia de Emergência era minha outra
opção para seguir como especialidade, mas acabei escolhendo a Ortopedia.
Escolhi também trabalhar em PS, plantão, é o que gosto, e talvez por isso ainda
tenho em minha mente os passos para atender urgências e emergências. Tenho uma
cadeia de passos registrados em minha mente para seguir durante a avaliação de
um paciente politraumatizado, de uma pessoa inconsciente.... E por forças que
não sabemos de onde vem, como disse o paciente músico em seu desabafo, esse ano
fiz duas revisões onde vi de novo sobre reanimação e atendimento de pessoas
inconscientes, crianças e adultos.
Por
segundos no voo ao ouvir o pedido da comissária, pensei, “Não sou médica, sou
ortopedista”, uma brincadeira comum entre colegas médicos. Pensei, mas nem
completei o pensamento, pois quando me dei conta os amigos mergulhadores, ao
final do pedido anunciado pela comissária, viraram-se todos para minha direção
e não pude optar em não me voluntariar. Disse calmamente, está bem gente, já
vou... Levantei, uma comissária veio perguntar se eu era médica , disse que
sim, ortopedista e me acompanhou até a frente da aeronave onde uma criança no
colo de sua mãe esperava. No trajeto até a criança a comissária me disse que a
pequena tinha vomitado e estava muito mole, se eu podia dar uma olhada.
Chegando à criança, uma outra moça apareceu, e um moço. Fiquei feliz em
perceber que não estava sozinha. Ela Otorrino, ele Psiquiatra. Bom, uma
Ortopedista, uma Otorrino e um Psiquiatra, acho que conseguiríamos fazer alguma
coisa que um Pediatra faria, até falei isso no final do atendimento brincando
mas os colegas estavam tensos e nem acharam graça no desabafo. Pelo menos
tentaríamos. A criança não reagia, tinha 1 ano e 4 meses aproximadamente.
Pusemos deitada no banco das comissárias e nesse momento, olhei para seu
esterno já pensando numa reanimação, e pensei “Senhor, por favor não deixe essa
criança morrer aqui! “, vi que a barriga se mexia, peguei sua pequena mão,
percebi que estava quente, e perguntei para a mãe qual o nome. A mãe disse e eu
comecei a chamá-la pelo nome, sem nenhuma resposta. Vi que seus lábios estavam
brancos, cinzas, suas pupilas fixas, pensei novamente “Senhor, que essa criança
não pare aqui...”. Deitada ficou mais mole, a cabeça pendia sem controle,
segurei a cabeça, a Otorrino sentou a criança, palpava a barriga, o Psiquiatra
segurava o pezinho e enquanto a mãe desesperada perguntava o que ela tinha e
pedia para por favor ajudarmos que ela não viveria sem ela, ele dizia para a
mãe que tudo ficaria bem. Fui conversando com a mãe, se a criança tinha algum
problema de saúde, se tinha engasgado, se tinha dado alguma medicação e num
estalo, olhei para a comissária e perguntei “Vocês tem oxigênio? Traga rápido
por favor.”, ela disse que tinha, trouxe rápido, primeiro cilindro emperrado,
trocamos e coloquei a máscara na boca e nariz da pequena, olhando de tempos em
tempo para ver se a cor voltava e se acriança reagia. Outro estalo
“estetoscópio vocês tem? Por favor tragam”, e assim que chegou a Otorrino
pegou, auscultou, viu que batimentos estavam presentes, e eu continuei na
cabeça a ver se os lábios coravam, se os olhos reagiam. Contando parece muito
tempo, ao vivo uma eternidade, mas imagino que foi muito rápido no tempo do
relógio. Então a boquinha começa a manifestar os primeiros sinais de reação, os
dentinhos aparecendo na tentativa de pronunciar algum balbucio, e eu vendo que
a criança está voltando fico feliz e animada e digo mãe, fala com ela mãe, olha
só, ela está voltando, está acordando”, chamo a criança pelo nome , ela abre os
olhos e me observa atentamente. Outro estalo
“Lanterna, vocês tem lanterna? “, e a comissária me indica a lanterna de
emergência ao meu lado, pego e avalio as pupilas da menina, reagindo! Respiro
aliviada, e imagino que agora a criança ia ficar bem. Tudo isso sentindo os
efeitos dos procedimentos de aterrissagem, estávamos perto de pousar. Passamos
o caso para o comandante que já havia pedido autorização de aterrissagem em
Guarulhos, e atendimento dentro da aeronave pela equipe de socorro do
aeroporto. Um dos médicos à bordo ficaria sentado com a mãe e a criança até a
equipe de regate entrar no voo. Minha colega Otorrino foi a escolhida, eu num
momento pensei puxa porque ela e não eu, mas logo pensei, formamos uma equipe
os 3 médicos à bordo, nossa missão foi salvar aquela criança, e se não
estivéssemos juntos não sei o que teria acontecido. Nada de glórias ou ser
notícia... Menos Tatiana! Volte para a terra, eres só mais uma em 7 bilhões.
Segui com o torpedo de oxigênio até acomodarem a criança e mãe no local, sendo
observada o tempo todo por aqueles olhos agora muito bem ativos e reativos do
presente de aniversário chamado Bianca. “
O
nome dos colegas médicos daquele dia não sei, só sei que algo nos conectou de
alguma forma, e acabei vendo que ser médico é como andar de bicicleta, uma vez
aprendido, você pode cambalear no recomeço mas acaba lembrando. Some a isso a
conexão com Deus, Anjos, Espíritos, Energias do Universo, como queiram chamar!
Um
ótimo ciclo de vida para todos é o que desejo para este novo ano! Paz e Saúde!